Milhas aéreas ou pontos de programas de fidelidade podem ser penhorados?

Dicas de Execução

Milhas aéreas ou pontos de programas de fidelidade podem ser penhorados?

 

 

 

Ulisses Taveira¹

 

De acordo com o Código de Processo Civil, “a penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios” (artigo 831), sendo que “não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis” (artigo 832).

Ou seja, a regra é de que os bens sem geral sejam penhoráveis, sendo a impenhorabilidade exceção e, como tal deve estar prevista em lei. É o que se denomina de tipicidade e taxatividade, não cabendo interpretação extensiva.

Nesse sentido, o artigo 833 do Código de Processo Civil estabelece:

“São impenhoráveis:

I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;

II – os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;

III – os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor

IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;

V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;

VI – o seguro de vida;

VII – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;

VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;

X – a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;

XI – os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;

XII – os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.

1º A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.

2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º .

3º Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdencária.

Já o artigo 834 do Código de Processo Civil determina que não havendo outros bens, os frutos e os rendimentos dos bens inalienáveis podem ser penhorados, como ocorre com os aluguel de imóvel inalienável.

Há, ainda, outras leis que estabelecem impenhorabilidade de bens, como a Lei 8.009/1990 e o artigo 1.715 do Código Civil, que estabelecem a impenhorabilidade do bem de família.

Analisando os artigos supracitados, não há qualquer menção expressa às milhas aéreas ou pontos de programas de fidelidade, que nada mais são do que moedas eletrônicas em sentido amplo e, como bens com valor de troca, são penhoráveis, pelo menos numa primeira leitura.

Todavia, como os planos de aquisição de milhagens e programas de fidelidade em geral instituem contratualmente o caráter personalíssimo das milhas e dos pontos, proibindo ou limitando a venda, de modo que incidiria a hipótese do artigo 832 do Código de Processo Civil, por serem inalienáveis.

Em razão disso, prevalece o entendimento na jurisprudência de que as milhas aéreas seriam impenhoráveis.

Ocorre que, na prática, as milhas aéreas são livremente negociadas pela internet, como se observa de anúncios feitos por sites especializados. Nesse sentido em uma rápida pesquisa na internet com a expressão “venda de milhas” retornou com alguns milhares de sites específicos destinados à compra e venda de milhas.

A reforçar tal argumento, recentemente, em razão da pandemia de COVID-19, as próprias empresas de programas de fidelidade de milhagens instituíram programa de solidariedade, Milhas do Bem, pelo qual seus clientes podem doar as milhas ou pontos para instituições parceiras do programa, o que mitiga ainda mais vedação de transferência dos pontos e milhas aéreas.

Ademais, segundo indicadores de mercado da Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (ABEMF) o faturamento bruto total das empresas de fidelidade somou R$ 1,8 bilhões de reais no primeiro trimestre de 2020 e foram emitidas 71,6 bilhões de milhas e resgatadas 54 bilhões.

Em razão dessa possibilidade de alienação dos pontos de programa de fidelidade e das milhas, já há decisões judiciais afastando a cláusula de inalienabilidade dos contratos entre cliente e companhia aérea, como se verifica no julgado a seguir, representativo da jurisprudência no âmbito do Tribunais de Justiça:

CONTRATO – PROGRAMA DE FIDELIDADE “ADVANTAGE” – CRÉDITO DE “MILHAS” – ESTIPULAÇÃO DE CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE – VENDA A TERCEIROS PROIBIDA AO PARTICIPANTE, MAS NÃO AO PRESTADOR DO SERVIÇO – RELAÇÃO DE CONSUMO – ABUSIVIDADE CARACTERIZADA – ART. 51, DO CDC – CONDUTA QUE, POR VIA REFLEXA, ATINGE O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA DA AUTORA E VIOLA O PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA – CANCELAMENTO DA EMISSÃO DE BILHETES AÉREOS QUE TEM O EFEITO DE MACULAR A IMAGEM DA AUTORA E O SEU BOM NOME NO MERCADO DE TURISMO – INDENIZAÇÃO ARBITRADA EM 40 MIL REAIS – SENTENÇA REFORMADA – AÇÃO JULGADA EM PARTE PROCEDENTE E IMPROCEDENTE A RECONVENÇÃO – RECURSO EM PARTE PROVIDO.

(TJ-SP 00099435720158260635 SP 0009943-57.2015.8.26.0635, Relator: Paulo Roberto de Santana, Data de Julgamento: 20/06/2018, 23ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/07/2018)

No mesmo sentido, ensina Leonardo Raphael Carvalho de Matos:

Houve um tempo em que as milhas eram prêmios recebidos a partir de viagens realizadas. Hoje, as milhas constituem moeda para a aquisição de produtos e/ou serviços diversos aos de viagens. As milhas, ainda, podem ser obtidas como produtos, através de simples compra. Da mesma forma que podem ser vendidas livremente. Logo, entende-se constituir moeda, sendo, esta, a sua natureza jurídica.

Como moeda, ela precisa de lei que a regule, e de previsão nos contratos de consumo. Faz-se necessário a sua inclusão nos estudos de mercado, nos tratados internacionais, no Direito Econômico e, claro, especialmente, no Direito do Consumidor. E este mesmo Direito precisa tutelar essas novas relações jurídicas, para que o consumidor não tenha seu direito violado por estas relações comerciais, inclusive quando estipuladas por contrato. Em se havendo contrato, não prosperam cláusulas abusivas (ou leoninas), que representam prejuízo aos consumidores.[1]

 

Assim, se as milhas e os pontos de programa de fidelidade são alienáveis e não incide a hipótese excludente do artigo 832 do Código de Processo Civil, a conclusão é de que podem sim ser penhorados.

Por fim, importa observar que a penhora de milhas e pontos em programas de milhagens é mais um instrumento a ser utilizado para dar maior celeridade e efetividade à execução trabalhista, garantindo-se o acesso a uma ordem jurídica justa, mormente em tempos de pandemia de COVID-19, em que as diligências externas por oficiais de justiça estão limitadas a casos urgentes.

 

 

1- Juiz Titular da Vara do Trabalho de Mirassol D’oeste, TRT da 23ª Região. Especialista em Direito do Trabalho e mestrando em Função Social do Direito. Foi Oficial de Justiça por 4 anos no TRT15.

[1] MATOS , Leonardo Raphael Carvalho de. Programa de Milhas e Contratos de Fidelidade: Natureza Jurídica e Impactos no Direito do Consumidor. Revista de Direito, Globalização e Responsabilidade nas Relações de Consumo , v. 1, p. 210-225, 2015.

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