ASPECTOS PROCESSUAIS DA REFORMA TRABALHISTA: A distribuição dinâmica do ônus da prova e a responsabilidade do poder público nas terceirizações

Fabrício Lima Silva

Iuri Pereira Pinheiro

A possibilidade de responsabilização do poder público em relação às parcelas devidas aos trabalhadores contratados por empresas terceirizadas como prestadoras de serviços, mediante regular procedimento licitatório, sempre foi objeto de inúmeras discussões judiciais e posicionamentos divergentes entre as mais altas cortes em nosso país.

Durante muito tempo, o principal direcionamento sobre a responsabilidade nas terceirizações estava previsto tão somente no entendimento contido na Súmula n. 331 do TST.

A Súmula n. 331, que foi aprovada nos idos de 1993, em substituição ao antigo Enunciado n. 256 do TST, em sua redação originária, não tratava especificamente da possibilidade de responsabilização do poder público na terceirização, apenas estabelecendo, em seu item IV, que: “O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e consta também do título executivo judicial”.

Em 1993, entrou em vigor a Lei n. 8.666/1993, com previsão expressa, em seu art. 71, que:

“Art. 71.  O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

§ 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos estabelecidos neste artigo, não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis” (destacamos).

Posteriormente, a redação do parágrafo 1º do mencionado artigo foi alterada pela Lei n. 9.032/1995, que estabeleceu que: “A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis” (destacamos).

Somente no ano de 2000, a Súmula n. 331 foi modificada, com a alteração da redação de seu item IV, com a previsão de que:

“O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993)” (destacamos).

Em julgamento ocorrido em novembro de 2010, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16, reconheceu a constitucionalidade da norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.

Em razão da referida decisão, o C. Tribunal Superior do Trabalho, reafirmando a possibilidade de responsabilização do poder público, desde que evidenciada conduta culposa, em maio de 2011, inseriu o item V na Súmula n. 331, in verbis:

“Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada” (destacamos).

Todavia, em abril de 2017, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 760931/DF, tratando novamente sobre o tema, fixou a seguinte tese:

“O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93” (destacamos).

Importante destacar que, em decisão dos embargos de declaração opostos em face da referida decisão, embora rejeitados, ficou esclarecida a possibilidade de responsabilização do Poder Público, desde que comprovadas a culpa in eligendo ou culpa in vigilando, in verbis:

“E não há obscuridade quanto à responsabilização do Estado pelas verbas trabalhistas inadimplidas pelos contratados, desde que, conforme está cristalino no acórdão e na respectiva tese de repercussão geral, (se) houver comprovação de culpa in eligendo ou culpa in vigilando por parte do Poder Público, o que se impõe diante de sua inarredável obrigação de fiscalizar os contratos administrativos firmados sob os efeitos da estrita legalidade.

A responsabilidade não é automática, conforme preconizou o legislador infraconstitucional, no artigo 71, §1º, da Lei de Licitações, mas não pode o poder público dela eximir-se quando não cumpriu com o seu dever de primar pela legalidade estrita na escolha ou fiscalização da empresa prestadora de serviços” (destacamos).

Assim, no contexto atual, a responsabilidade subsidiária da Administração Pública não decorre do mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa terceirizada, sendo que, para que haja a responsabilização, é necessário que fique evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei de Licitações e Contratos administrativos, especialmente quanto à fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora.

Aqui não se questiona a imprescindibilidade da comprovação de culpa. Em outros termos, prova de que a Administração Pública deixou de observar o dever de fiscalização dos direitos trabalhistas devidos aos empregados da empresa prestadora de serviços, uma vez que a sua responsabilização subsidiária decorre de aspectos subjetivos e não objetivos.

Diante deste contexto, afastada a presunção da existência de culpa, a questão que se coloca consiste em saber se a culpa deve ser comprovada pelo trabalhador ou se seria o caso de distribuição dinâmica do ônus da prova.

No que concerne ao ônus da prova acerca da fiscalização da terceirização, entendemos que tal encargo deve ser da Administração Pública, em virtude do dever de conduta positiva exigida pela Lei 8.666/1993, nos arts. 58, III e 67.

Conforme destacado na obra “Manual de Terceirização: Teoria e Prática”, in verbis:

O regulamento mais detalhado do modo de fiscalização é descortinado pelo Decreto 9.507/2018 e pela Portaria 443/2018 do Ministério do Planejamento, os quais, à semelhança da Lei 8.666/93, são normas gerais de licitação, aplicável assim a todos os entes públicos por força do art. 22, XXVII, da Constituição Federal.

E em tal diploma se infere que existe uma vasta gama de providências a serem tomadas pela Administração Pública na fiscalização, sendo esta passível de comprovação fundamentalmente pelo meio documental[i].

Destacamos que há grande divergência no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho sobre o tema.

Anteriormente, havia entendimento majoritário das turmas de que competia à Administração Pública o ônus de comprovar que atuou sem culpa no dever de fiscalização do contrato em relação à prestadora de serviços, em razão do princípio da aptidão para a prova, in verbis:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. APELO INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.105/2015. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ENTE PÚBLICO. ÔNUS DA PROVA. Cinge-se a questão controvertida a examinar tanto a possibilidade de responsabilização subsidiária do ente integrante da Administração Pública quanto a distribuição do encargo probatório, nos casos em que se discute a terceirização de serviços pelo ente público, à luz do art. 71, § 1.º, da Lei n.º 8.666/93, da ADC n.º 16 e do Tema n.º 246 de Repercussão Geral. No caso dos autos, ficou demonstrado no acórdão que a segunda Reclamada não promoveu a fiscalização do contrato quanto ao correto adimplemento das obrigações trabalhistas. Desse modo e, diante do posicionamento que prevalecente no âmbito desta Primeira Turma, ao interpretar o julgamento proferido pelo STF na ADC n.º 16 e RE-760.931/DF, é o de que não foi fixada a tese da distribuição do ônus da prova, razão pela qual não haveria óbice na adoção da regra de aptidão para prova, com base na teoria da distribuição dinâmica do ônus probatório. Ressalva de entendimento. Agravo de Instrumento conhecido e não provido. (TST – AIRR: 109322020165180015, Data de Julgamento: 30/10/2018, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 05/11/2018) (destacamos).

I – AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.467/2017 – RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – ÔNUS DA PROVA DA FISCALIZAÇÃO DO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS Vislumbrada a violação ao art. 818 da CLT, dá-se provimento ao Agravo de Instrumento para determinar o processamento do Recurso de Revista. II – RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.467/2017 – RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – ÔNUS DA PROVA DA FISCALIZAÇÃO DO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS 1. Compete à Administração Pública o ônus da prova quanto à fiscalização, considerando que, (i) a existência de fiscalização do contrato é fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do Reclamante; (ii) a obrigação de fiscalizar a execução do contrato decorre da lei (artigos 58, III, e 67 da Lei nº 8.666/93); e (iii) não se pode exigir do trabalhador a prova de fato negativo ou que apresente documentos aos quais não tenha acesso, em atenção ao princípio da aptidão para a prova. Julgados. 2. O E. STF, ao julgar o Tema nº 246 de Repercussão Geral – responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviço, RE 760931 -, não fixou tese específica sobre a distribuição do ônus da prova pertinente à fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas. Recurso de Revista conhecido e provido. (TST – RR: 10019248820165020001, Relator: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 11/09/2019, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 13/09/2019) (destacamos).

Por outro lado, atualmente, há também o posicionamento no âmbito do TST de que compete ao trabalhador e não à Administração Pública o ônus sobre a ausência do cumprimento do dever de fiscalização das obrigações trabalhistas da empresa prestadora de serviços, afastando, inclusive, a tese da aptidão da prova, em razão da presunção relativa de legitimidade dos atos administrativos.

Tal posicionamento decorre do entendimento do Supremo Tribunal Federal que, em diversas decisões proferidas em sede de reclamação constitucional, destacou ser do trabalhador o encargo probatório. Nesse sentido, a seguinte decisão da 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho:

RECURSO DE REVISTA. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. CULPA IN VIGILANDO. ÔNUS DA PROVA DO RECLAMANTE. LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DOS ATOS PRATICADOS PELOS AGENTES PÚBLICOS. IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO AUTOMÁTICA. O Supremo Tribunal Federal, após declarar a constitucionalidade do artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93 nos autos da ADC 16/DF, alertou ser possível o reconhecimento da responsabilidade subsidiária quando constatada omissão do ente público na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da prestadora de serviços. Em sede de repercussão geral, julgou o mérito do RE 760931/DF, mas deixou de fixar tese acerca do ônus da prova do dever de fiscalização. Para sua definição, é imprópria a adoção da teoria da aptidão da prova ou mesmo o enquadramento na exceção do artigo 373, § 1º, do CPC de 2015. Isso não só em razão da ausência de maiores dificuldades para obtenção do substrato probatório, amenizadas, aliás, com a superveniência da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), mas, sobretudo, por conta da presunção relativa de legitimidade das informações oficiais de agentes públicos. Impor ao Poder Público o ônus da prova significa, ao revés, presumir sua culpa in vigilando, presunção cuja resultante natural é a “transferência automática” da responsabilidade pelo pagamento dos haveres trabalhistas, na contramão da ratio decidendi firmada no RE 760931/DF, erigido à condição de leading case. Dessa forma, o e. TRT, ao imputar ao tomador de serviços o encargo processual de comprovar a ausência de conduta culposa, acabou por transferir automaticamente à Administração Pública a responsabilidade subsidiária, mediante decisão proferida à míngua de prova robusta de sua culpa in vigilando. Recurso de revista conhecido e provido. (ARR-1170-25.2014.5.02.0005 , Relator Ministro: Breno Medeiros, Data de Julgamento: 04/04/2018, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 13/04/2018)

Assim, constatamos que, atualmente, existem duas linhas de entendimentos diametralmente opostas no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, em sentido contrário ao comando do art. 926 do CPC, pelo qual os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Particularmente, entendemos que imputar ao trabalhador o ônus da prova do fato de que a Administração se omitira do dever de fiscalizar o cumprimento obrigações trabalhistas, implica exigir o que a doutrina denomina “prova diabólica”, porquanto deverá provar um fato inexistente (a ausência de fiscalização pela administração pública) ou por meio de documentos comprobatórios que, se existentes, sempre estiveram de posse da tomadora de serviços.

Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos somente deveria ser aplicada aos atos comissivos do Poder Público. No caso de ausência de fiscalização, não há como se presumir legitimidade, por se tratar de conduta omissiva, sendo que, se constatado o descumprimento de deveres trabalhistas pela empresa contratada, há fortes indícios de que a fiscalização não foi levada a efeito e, se o foi, não foi suficiente para prevenção da ocorrência de lesão aos direitos decorrentes da contratação.

Ademais, o art. 373, §1º, do CPC e o atual 818, § 1º, da CLT estabelecem que diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

Entendimento contrário, data maxima venia, implicaria em negar vigência ao referido disposto legal e à faculdade conferida ao magistrado, como diretor do processo.

Em razão do exposto, diante da existência de forte dissenso jurisprudencial e que o C. TST tem entendido por ser do trabalhador o encargo probatório após o julgamento do RE 760931, uma alternativa seria distribuição dinâmica do ônus da prova permitida pelos arts. 373 do CPC e 818 da CLT, deixando tal questão previamente esclarecida com o fim de oportunizar o contraditório ao ente público.

O ônus da prova, a princípio seria do trabalhador, mas em virtude da peculiaridade de que essa prova é eminentemente documental e que os documentos em tese estão em poder do ente público, a movimentação do ônus é medida de justiça.

A fim de evitar redesignação de audiência, já se pode requerer tal distribuição dinâmica na própria petição inicial ou ser determinado de ofício pelo magistrado, com a observância dos princípios do devido processo legal e do contraditório.

Importa esclarecer que não se está aqui a negar vigência ao princípio da presunção relativa de legitimidade dos atos administrativos, pois a regra geral ainda é a distribuição estática do ônus da prova, em que a carga está repartida prévia e abstratamente, nos termos do art. 373, caput, do CPC No entanto, não se afigura razoável exigir do trabalhador a prova de fato negativo ou que apresente documentos aos quais não tem acesso, o que atrai a incidência da regra excetiva do parágrafo primeiro acima transcrito, de acordo com as peculiaridades fáticas e técnicas do caso concreto.


[i] Pinheiro, Iuri Pereira; Miziara, Raphael. Manual da Terceirização: Teoria e Prática / Iuri Pinheiro e Raphael Miziara – 2. ed. rev. atual. e ampl. – Salvador: Editora JusPodivm (no prelo)

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